sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Crescer com liberdade


Agora que começa a aproximar-se o Natal, com as típicas refeições em família que esta época implica uma das coisas que mais me começa a incomodar é a quantidade de doces que as pessoas comem com o uso de ingredientes animais. Porque até consigo compreender que alguém me diga que precisa de carne, peixe, leite ou ovos para viver e para se manter saudável - não concordo com esta afirmação, como é óbvio, mas compreendo que alguém a faça. Mas o que ninguém pode dizer é que precisa de um bolo de chocolate com chantilly para se manter saudável ou de um arroz doce para viver ou de qualquer outra sobremesa que tipicamente enche as mesas nesta altura.

Não consigo deixar de ficar chocada sempre que vejo alguém a fazer bolos cheios de ovos, ou leite ou a comer gelados carregados de leite e de natas, por exemplo. Porque que alguém acredite que precisa de carne ou leite para se manter saudável é muito diferente de acreditar que temos o direito de usar esses produtos apenas para fazer bolos, doces e todo o tipo de sobremesas que não fazem falta absolutamente nenhuma a ninguém.

Mas, na verdade, pensando bem isto faz todo o sentido dentro do sistema do carnismo, uma expressão cunhada por Melanie Joy. Esta psicóloga, professora e autora de livros e várias palestras em defesa do veganismo, criou esta expressão para designar um sistema que leva as pessoas a distanciarem-se cada vez mais das consequências dos seus hábitos - ao nível da alimentação e não só - e da forma como estes implicam o uso dos animais. Acredito que tem muito mérito a criação desta expressão e espero sinceramente que ela represente a capacidade que começamos a ter de perceber o que implicam as nossas escolhas. No tempo da escravatura a palavra racismo não existia, porque simplesmente se considerava ser uma realidade as pessoas de raça negra serem inferiores às brancas. No tempo em que as mulheres não tinham quaisquer direitos a expressão machismo também não existia porque se considerava que estas eram realmente seres inferiores.

É verdade que já existe a expressão especismo para designar a forma como descriminamos algumas espécies a favor de outras: por exemplo, no mundo ocidental poucas pessoas teriam coragem de comer um cão ou um gato mas a maior parte não hesita em comer vacas ou porcos. Mas a expressão carnista vai ainda mais longe para demonstrar que existe todo um sistema que, de forma automática ou quase inconsciente, procura preservar a ideia de que podemos fazer dos animais aquilo que quisermos e que eles existem apenas para satisfazer os nossos caprichos.

Porque não é nada mais que um capricho fazer um bolo de chocolate com quatro ou cinco ovos quando podemos perfeitamente fazer sem nenhum. Não é nada mais que um gesto de ignorância fazer um gelado com leite de vaca quando podemos usar leite de coco ou natas vegetais ou simplesmente fruta, por exemplo.

Mas este sistema do carnismo faz muito mais do que manter-nos na ignorância acerca das consequências dos nossos gestos. Este sistema afasta-nos de nós próprios, dos nossos sentimentos e da nossa natureza. 

Acredito numa evolução da espécie humana, acredito que o ser humano tem uma natureza boa e também acredito que, progressivamente, temos vindo a tornar-nos cada vez menos tolerantes com o sofrimento provocado pela nossa própria espécie. Basta pensar que na idade média, por exemplo, eram comuns rituais de tortura como o linchamento, o desmembramento, o enforcamento o queimar pessoas vivas na fogueira e tudo isto era feito em público, onde qualquer um podia assistir, incluindo até crianças. Hoje em dia, não passaria pela cabeça da grande maioria da população humana assistir a estes actos com a mesma naturalidade com que eram encarados nessa altura. É verdade que ainda existem sítios e países onde violência deste tipo continua a estar presente. É verdade que, em portugal, ainda temos touradas por exemplo, que são talvez um dos últimos resquícios deste tipo de barbaridade tornada um espectáculo público mas também é verdade que, apesar de tudo, esta vai começando a ser cada vez menos tolerada. E, na generalidade dos países ditos civilizados, acredito que caminhamos para sociedades cada vez menos violentas onde a violência gratuita é cada vez menos tolerada.

No seu livro, Melanie Joy, cita alguns estudos que chegaram à conclusão que o ser humano tem um desejo natural de não agredir, de não fazer o mal. Ela diz que se chegou à conclusão que, mesmo em cenários de guerra, a grande maioria dos soldados atira para falhar e não para acertar nos outros. Outro autor, Jonathan Haidt, estudioso da área da psicologia moral, no seu livro The Righteous Mind, também cita vários estudos que vão contra a famosa visão do gene egoísta e em que as pessoas parecem demonstrar essa propensão inata para colaborar umas com as outras sem se prejudicarem, mesmo em casos em que não se conhecem. Um desses estudos foi feito através da criação de um jogo que envolvia a distribuição de lucros e recompensas através da Internet e através do qual se concluiu que, mesmo em situações em que as pessoas não se conheciam nem se viam, a tendência geral era para distribuírem tudo de modo justo e igualitário umas pelas outras. Isto só mudava quando aparecia alguém no jogo que, propositadamente, começava a fazer as coisas funcionarem mais a seu favor. E aí, mesmo sem combinarem e sem o fazerem deliberadamente, todos os restantes participantes acabavam por se unir de forma a conseguirem castigar essa pessoa.

No seu livro Melanie Joy também fala das pesquisas que fez junto de pessoas que trabalhavam em matadouros e noutros sítios ligados à morte e ao uso de animais. Com estas pessoas Melanie Joy verificou que acontecia um de dois fenómenos: ou a pessoa ficava totalmente desligada dos seus afectos e se tornava numa pessoa fria, insensível e quase sádica capaz até de maltratar os animais de formas horríveis e sem grandes remorsos ou a pessoa acabava por ficar deprimida e com  muito mais tendência para recorrer a álcool, drogas, ou outro tipo de comportamento que a ajudasse de alguma forma a tentar recalcar todo o sofrimento que via diariamente nos animais com que tinha de lidar.

Então esta pesquisa demonstra que o ser humano, salvo raras excepções, não está preparado para lidar com esse sofrimento, porque não faz parte da sua natureza infligir dor a outros seres indefesos.

Por isso, para que esse sofrimento continue a existir, é preciso que o carnismo nos permita desligar daquilo que sentimos cada vez que vemos um animal nos nossos pratos. Precisamos de nos distanciar do que sentimos e do sofrimento que sabemos que foi provocado aquele animal para que acabasse ali na nossa mesa, para sermos capazes de o comer.

Acontece que, quando aprendemos a fazê-lo de forma automática, não é fácil voltarmos a dar espaço a esses sentimentos. Porque eles provocam mal-estar, desconforto e temos medo de não ser capazes de lidar com isso.

Muitas pessoas dizem que não são capazes de ver documentários como o earthlings, por exemplo, que retrata todo o sofrimento a que estão sujeitos os animais da indústria justamente porque não se sentem capazes de enfrentar todo esse sofrimento porque, depois de tantos anos a tentarem desligar essa parte de si próprias, pode ser muito assustador deixar que tudo volte assim, de repente. Até porque isso obriga-nos a admitir que, muitas das coisas que tomamos como certas, afinal estão mesmo profundamente incorrectas. E isto implica também aceitar que os nossos pais e professores e outras pessoas nos ensinaram coisas erradas e que, nós, muitas vezes as ensinámos também aos nossos filhos. E é precisa alguma coragem para enfrentarmos assim todas as nossas certezas e para por em causa toda a visão do mundo que fomos construindo.


Mas a verdade é que, se todo o mundo tivesse ignorado o sofrimento dos judeus e dos outros prisioneiros nos campos de concentração o mundo hoje seria um lugar muito diferente de certeza. E a verdade é que é ainda mais doloroso afastarmos-nos da nossa própria natureza. É ainda mais doloroso tentarmos esconder-nos dos nossos sentimentos e esquecermos-nos de quem somos.

E acredito que este sistema do carnismo está na base da violência contra os animais mas está também na base da violência contra nós próprios e contra os outros seres humanos. Porque quando somos ensinados, desde pequenos, a desligar-nos da nossa parte que sente, que se preocupa, que quer o bem dos outros seres, então não sabemos até que ponto é que nos estaremos a desligar não apenas dos animais mas de todos os outros seres vivos.

Há também estudos interessantes que mostram que mesmo bebés pequenos, de seis e nove meses, já reagem às injustiças. Estes bebés são colocados perante a imagem de uma figura que tenta subir uma superfície inclinada ao mesmo tempo que empurra um objecto. Pouco depois surge uma outra figura que a tenta ajudar e depois uma outra que a tenta prejudicar. No final estas figuras são disponibilizadas num tabuleiro para que a criança escolha com qual quer brincar. A grande maioria dos bebés prefere brincar com a figura que ajudou e ignora a que prejudicou. Isto demonstra que, mesmo bebés tão pequenos, já têm alguma noção do que é certo ou errado mas, acima de tudo, acredito que demonstra a nossa natureza de querer o bem dos outros seres.

Então se ensinamos a todas crianças que é bonito fazer o bem e não prejudicar ou magoar os outros devemos começar a ensiná-los que isto é válido também para os animais, para todos os animais, não apenas para os gatos e cães. E, se lhes ensinarmos isto acredito que lhes estamos a dar espaço para crescerem em harmonia com os outros mas também consigo próprias.

Porque dói cada vez que vejo alguém por um cadáver na mesa e comê-lo como se nada fosse, porque dói cada vez que vejo alguém despejar pacotes de leite para fazer um bolo sem se preocupar com o que está por trás disso, porque dói cada vez que vejo crianças e adolescentes a aprenderem a alimentar-se dos corpos de outros seres e dói ainda mais cada vez que o fazem na mesma mesa que eu. Sim, dói constatar diariamente esse sofrimento nas prateleiras dos supermercados, nas montras dessas lojas de cadáveres a que chamam talhos e até nos pés das pessoas que usam restos de outros seres como se ainda fôssemos homens primitivos que não têm ao seu dispor mais do que a pele dos animais que matam para se protegerem do frio. Tudo isto dói e dói ainda mais quando ainda por cima precisamos de nos calar porque nós é que somos extremistas e radicais e não devemos perturbar o repasto das outras pessoas. Mas, mais do que todas estas dores, dói mesmo, de verdade, quando nos distanciamos de nós à custa de querermos esquecer a nossa verdadeira natureza. Dói mesmo quando deixamos de dar valor aos nossos sentimentos apenas para não nos incomodarmos a nós e os outros. E, mais do que qualquer outra dor que sei que não vou poder evitar, não quero que o meu filho sinta a dor de não poder ouvir o seu coração, de não poder ser ele próprio de não poder estar em paz com a sua consciência.

Quero que o meu filho cresça com a paz, com a liberdade e com a tranquilidade de coração que vejo no vídeo destas crianças que aqui deixo. Porque, se para muitos o veganismo é um caminho de repressão porque temos de fazer escolhas e de nos privar de algo, para mim é um caminho de liberdade. De verdadeira liberdade porque nos permite estar em paz connosco, com a nossa consciência e com a natureza.
                                                 


                                                       Vídeo - crianças veganas