quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Criar filhos com coração

Há uns dias no caminho  o meu filho de quatro anos pisou, de propósito, uma formiga. Sei que, para ele, esse gesto não teve nenhum significado especial. No entanto incomodou-me porque me fez lembrar de uma questão que sempre me acompanhou e que sei que acompanha muitos outros pais: qual será a melhor forma de fazer com que as crianças cresçam a respeitar os animais, e não só? 

Neste caso procurei falar com ele e disse-lhe que a formiga tinha tanto direito à vida como qualquer outro animal e que não é muito bonito matar de propósito e sem necessidade nenhuma um bichinho que, por muito insignificante que nos pareça, é um ser vivo como nós. Mas também não quis dar demasiada importância ao assunto porque sei que para uma criança de quatro anos ainda não é fácil ter consciência do que implica matar ou ter a empatia necessária para compreender tudo o que está implicado nesse gesto. 

Mas, por acaso e mesmo a propósito estive ontem a ouvir uma palestra do psicólogo canadiano Gordon Neufeld, cujo trabalho admiro bastante ( não posso por aqui o link para essa palestra porque é pago, mas deixo o excerto de uma outra em que ele também fala nisto: ver vídeo). Nessa palestra ele falava um pouco de como todos queremos que os nossos filhos se transformem em boas pessoas, em pessoas que se preocupam com os outros mas em como, na verdade, nem sempre lhes damos grande possibilidade de o fazerem realmente.

Este autor fala muito nas questões do apego e na importância fundamental que tem, para o desenvolvimento de uma criança, sentir que tem os pais presentes, sobretudo nos primeiros tempos de vida e que estes a amam e aceitam incondicionalmente. As crianças nascem completamente prontas para se relacionarem e para estabelecerem laços profundos com as pessoas que cuidam de si. Sabemos que esses laços são essenciais para toda o seu desenvolvimento de uma forma tão importante que a sua falta pode provocar todo o tipo de atrasos cognitivos, emocionais e até físicos e - em casos extremos - pode mesmo levar à morte. Isto foi bem demonstrado com o caso muito estudado das crianças criadas em instituições da Roménia - país em que os anos de ditadura comunista por causa de várias políticas do governo ligadas ao incentivo à natalidade - levaram um número muito elevado de crianças a ser institucionalizado em sítios onde nunca lhes era possível estabelecer um vínculo com um adulto. Aquilo que se descobriu nestas instituições foi que estas crianças apresentavam vários atrasos emocionais, cognitivos e psicomotores mas apresentavam também alguns sinais físicos provocados por essa falta, como uma estatura significativamente abaixo da média e uma taxa de mortalidade muito superior ao que seria de esperar mesmo nas instituições onde não faltava comida e os cuidados médicos e de higiene eram rigorosamente mantidos. 

Então aquilo que Gordon Neufeld explica tão bem é que precisamos de dar aos nossos filhos as condições ideais para que eles criem esse vínculo connosco porque, quando isto não acontece, a criança precisa de aprender a defender-se. Todas as crianças tentam adaptar-se o melhor possível ao ambiente em que são criadas. Se nesse ambiente não lhes é possível estabelecer um vínculo significativo e seguro com as pessoas que cuidam de si, a única forma de garantirem que se adaptam o melhor possível e que preservar as ligações que encontram é tentarem esquecer que esse vínculo é importante ou necessário. 

Quando comparamos os seres humanos com outros mamíferos percebemos que nascem muito imaturos. As nossas crias, ao contrário das dos outros animais, precisam de vários meses apenas para conseguirem andar sozinhas e de muitos anos até atingirem algum grau de independência. Então a natureza encarregou-se de nos dotar deste instinto de vinculação que nada mais é que uma forma de garantir a sobrevivência dos bebés humanos que precisam de uma presença constante dos pais durante os seus primeiros tempos de vida. Isto quer dizer que, se por algum motivo, a criança ou o bebé não consegue sentir essa presença isto é tão assustador e vai tão contra todos os seus instintos mais primários que ele precisa de arranjar uma forma de ignorar e de calar esses instintos para que possa adaptar-se o melhor possível a esse ambiente. No caso de algumas crianças institucionalizadas esta falha era tão grande e o preço a pagar por essa adaptação era tão elevado que o seu desenvolvimento ficava seriamente comprometido ou acabava mesmo na morte da criança. 

Mas, no caso de crianças que não passam por situações tão extremas mas que, ainda assim, não encontram as condições ideais o que acontece é que estas crianças precisam de criar algumas adaptações para que não estejam constantemente a sentir a ferida criada por essa ausência. As crianças precisam desesperadamente de estabelecer relações com os pais e, se a única forma de estabelecer essas relações, for calar ou fechar uma parte de si então é isso que farão porque, apesar de tudo, isso é mais fácil do que sentir-se constantemente rejeitado ou ignorado. 

E assim a criança aprende que, para viver no mundo, essas adaptações são necessárias e essenciais e estas passam a fazer parte de toda a sua forma de estar, de se relacionar e de encarar a vida e o mundo. De tal forma que, quando crescemos já não temos consciência de que a nossa forma de estar fez parte dessa adaptação e passamos a encará-la apenas como sendo um produto da nossa personalidade que, não sabemos que, na realidade, não é muito mais do que a forma como reagimos a todas as experiências que vivemos e a forma como fomos sendo moldados por elas. 

Então aquilo que Gordon Neufeld afirma é que, quando uma criança é constantemente ferida por alguém que não compreende e não respeita essa sua necessidade de estabelecer um vínculo a sua defesa principal será a de negar essa necessidade. Mas, para o fazer, precisa de fechar uma parte de si, precisa de fechar a parte que se preocupa, que se importa com o que os outros dizem, fazem ou sentem, precisa de fechar a parte de si que quer desesperadamente ser amada e esquecer-se que ela existe. Porque, de outro modo, essa perda torna-se demasiado dolorosa para que a criança consiga viver diariamente com ela. 

Nos casos menos extremos em que essa perda não é total o que acontece é que a criança fica num estado de ambivalência em que fecha apenas algumas partes de si, embora não totalmente. Estes casos são aqueles que se acredita estarem na base de muitas perturbações de ansiedade nos nossos dias que podem ter origem neste sentimento da criança não saber bem com o que poderia contar diariamente e não sentir os pais como uma fonte suficientemente estável ou segura de protecção e de acolhimento. 

Um coração fechado é um coração que não sente empatia, é um coração que não tem a capacidade de se por no lugar dos outros, é um coração que nunca chegou a crescer verdadeiramente, que ficou refém das suas experiências de infância. Gordon Neufeuld diz que a preocupação com os outros acontece naturalmente quando crescemos, porque faz parte do nosso potencial e de um processo evolutivo natural. Mas  ele explica também que esse crescimento, apesar de ser sempre possível, não é inevitável, ou seja, se não existirem as condições ideais ele não pode simplesmente acontecer e é por isso que temos tantos adultos imaturos: porque cresceram fisicamente mas, de um ponto de vista psicológico, ainda ficaram presos na infância. Podemos usar aqui a analogia da semente de um carvalho - que era usada por Carl Rogers, pai da psicologia humanista - para ilustrar este ponto: a semente contém em si tudo aquilo que é necessário para se tornar um carvalho, todo esse potencial existe já na sementinha (desde que não seja uma semente estéril da Monsanto) mas esse potencial só pode manifestar-se se o seu ambiente tiver as condições necessárias para o fazer; se não houver água, luz ou um solo adequado a semente morre mas se estas condições existirem mas não de forma suficiente ela pode não crescer tudo ou crescer torta. Por exemplo, se a luz existente for apenas de uma pequena janela no canto de uma divisão a planta pode crescer torta, em direcção a essa luz, tentando aproveitá-la ao máximo. O mesmo acontece com as crianças que, quando não encontram as condições ideais, podemos dizer que acabam por crescer tortas também,  ou com distorções daquele que seria o seu comportamento natural caso essas condições existissem. 

Então a única forma de criarmos filhos que se preocupam com os animais, mas também com as pessoas e com o mundo é certificarmos-nos de que criamos as condições necessárias para que possam manter aberto o seu coração.  Uma das condições essenciais para que isso aconteça é que sejamos capazes de lhes transmitir, diariamente, o nosso amor incondicional. E, para isso precisamos de ter a certeza de que estamos presentes o suficiente nas suas vidas, para que eles possam manter-se confiantes e seguros. 

Gordon Neufeld explica que, muitas vezes, temos tendência para querer ensinar os nossos filhos a serem crianças afectuosas ou empáticas através das recompensas ou castigos, por exemplo. Mas nenhuma destas duas funciona verdadeiramente: no caso das recompensas estas acabam por perder o seu propósito quando percebemos que, se forem usadas repetidamente, a criança passa a comportar-se daquela forma apenas para receber a recompensa ou o elogio e isto é exactamente o oposto de um comportamento empático ou altruísta. No caso dos castigos a questão é mais grave porque estes servem justamente para ferir a criança na sua necessidade de se sentir próxima de nós e de se sentir aceite. 

Neste caso a conversa que tive com o meu filho não foi propriamente errada ou desadequada, até porque não ouve um julgamento ou castigo da minha parte mas, na verdade, não acho que seja este tipo de conversa que irá fazer verdadeiramente a diferença. Claro que é importante irmos falando com os filhos sobre o seu comportamento e é sempre bom aproveitarmos para os por a reflectir sobre as consequências dos seus actos mas, neste caso, em que eu quero que ele cresça a ser capaz de compreender que não temos o direito de maltratar ou agredir propositadamente nenhum dos outros seres que partilha o planeta connosco (quer sejam animais ou pessoas) a única coisa que me resta fazer é esperar e confiar. Esperar que ele cresça e se torne capaz de ter um comportamento mais empático e confiar que respeitar e cuidar dos outros faz parte da sua natureza e que há-de manifestar-se quando for altura disso e que, aliás, já se vai manifestando noutros aspectos que estão de acordo com o seu nível de desenvolvimento.

Então a única coisa que nos resta para criar filhos empáticos e que se preocupam é mesmo confiar neles: confiar que as crianças são boas na sua essência e confiar que a empatia e o altruísmo fazem parte da natureza humana (já existem estudos que mostram que os bebés são naturalmente bons: ver vídeo) e confiar que só precisamos de lhes dar espaço e as condições necessárias para que aprendam a desenvolvê-los. Mas para isso precisamos de aprender a confiar também em nós, precisamos de confiar nos nossos instintos e na nossa capacidade de lhes darmos tudo o que eles precisam. Porque só nós podemos ser os melhores pais para os nossos filhos podem ter.

Esta confiança não tem nada a ver com uma atitude passiva ou permissiva porque também acredito que os pais precisam de guiar e orientar os seus filhos mas precisamos de o fazer a partir deste lugar de confiança fundamental que deve existir dentro de nós. Precisamos de orientar, sim, de dar o exemplo e de falar e de reflectir sobre o comportamento e as suas consequências de acordo com a idade de cada filho (e claro que com crianças mais velhas estas conversas vão-se tornando mais importantes) mas precisamos acima de tudo de saber que o contributo mais importante que podemos dar para a sua educação e para que cresçam sensíveis e empáticos é fazê-los sentir sempre aceites, acolhidos e amados incondicionalmente por nós. Precisamos de nos lembrar que mais do que moldar as crianças temos de dar-lhes espaço para que a sua verdadeira natureza possa manifestar-se e precisamos de acreditar que essa natureza é essencialmente boa e orientada para os relacionamentos e para o cuidado com o outro.

Ninguém vive feliz sem bons relacionamentos e já há estudos que demonstram que a solidão mata mesmo aumentando muito as probabilidades de se vir a sofrer um ataque cardíaco, também já existem estudos que mostram que a dor da rejeição activa no cérebro exactamente as mesmas áreas que a dor física. Isto demonstra que todos temos esse desejo fundamental de ser acolhidos, de nos ligarmos aos outros. Também já existem estudos que demonstram que os bebés nascem já com um sentido de justiça (ver vídeo) e outros que demonstram que as crianças pequenas já têm tendência para recompensar os comportamentos altruístas (ver artigo). Porque os seres humanos estão realmente programados para viver em grupo e porque essas ligações sociais são tão importantes para nós realmente nem faz sentido que não esteja na nossa natureza preservar as ligações e ter comportamentos altruístas. E a empatia é uma forma essencial de preservar as ligações, já que sem ela ficamos desligados dos outros. E quando temos a capacidade de sentir empatia pelas outras pessoas também se torna mais fácil sentir empatia pelos animais mesmo por aqueles que nos parecem tão distantes e tão diferentes de nós. Porque significa que temos a capacidade de abrir o coração e que estamos disponíveis para nos deixarmos tocar pelos outros com o que isso tem de bom nos momentos felizes, mas também com o que isso tem de mau nos momentos difíceis. Então isso quer dizer também que aprenderemos rapidamente a evitar o sofrimento dos outros porque percebemos que, quando vivermos de coração aberto, esse sofrimento também nos magoa a nós.

Por isso acredito que se queremos criar filhos que não se tornem cúmplices do sofrimento a que os animais são diariamente sujeitados hoje em dia precisamos de lhes dar as condições necessárias para que não precisem de fechar o coração. Porque com o coração aberto esse sofrimento nunca nos poderá ser indiferente, porque de coração aberto nunca nos sentiremos capazes de ser cúmplices desse massacre constante a que os animais da indústria alimentar são sujeitos.

Por isso, para além deste blog, tenho também um outro sobre parentalidade: Parentalidade com Apego, porque acredito que só podemos criar um mundo melhor quando formos capazes de respeitar verdadeiramente as crianças e de compreender as suas necessidades e só teremos adultos que respeitam verdadeiramente os animais quando nos permitirmos viver num mundo onde não precisamos de fechar o coração. Porque só quando pudermos viver tranquilamente de coração aberto e que podemos finalmente abrir também os olhos para todas as injustiças deste mundo. E só com o coração aberto é que essas injustiças poderão finalmente ganhar um peso demasiado grande para que nos resignemos a suportá-las, só com o coração aberto é que poderemos ter esperança que um mundo melhor se torne realmente possível. 

E porque só com o coração aberto é que nos podermos sentir verdadeiramente maduros a cumprir todo o nosso potencial, E só com o coração aberto é que uma vida verdadeiramente feliz e plena se pode tornar possível.